Ação penal nos crimes contra a ordem tributária – exaurimento do procedimento adminstrativo

A abordagem do tema proposto exige análise sistemática das normas inseridas no nosso ordenamento jurídico e que regulam a matéria. Primeiramente, é importante observar que os crimes definidos nos artigos 1º e 2º da Lei 8137 de 27 de dezembro de 1990, que define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências, impõe a necessária representação que será encaminhada ao Ministério Público, após proferida decisão final na esfera administrativa, sobre a existência fiscal do crédito tributário correspondente.

Contudo, apesar da clareza do texto legal, opiniões ainda estão divididas em nossos Tribunais, havendo pontos de divergência que parecem inconciliáveis. Aliás, o próprio Superior Tribunal de Justiça, já decidiu que: “o exaurimento do procedimento administrativo-fiscal não se consubstancia em condição de procedibilidade para a instauração da ação penal. Ressalva da posição contrária do Relator”.

Para os defensores dessa posição que conta com precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal “o Ministério Público é o dominus litis da ação penal pública (CF, art. 129, I). A conclusão do procedimento administrativo-tributário não constitui pressuposto, nem condição jurídica para a atuação do órgão ministerial que, dispondo de outros meios probatórios, poderá oferecer denúncia, visto que as esferas administrativa e penal são autônomas”. Alicerçados pela equivocada interpretação da Súmula 609 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual "é pública incondicionada a ação penal por crime de sonegação fiscal".

Ousamos, discordar dessa posição, pois conforme o MINISTRO EDSON VIDIGAL Presidente do Superior Tribunal de Justiça que “não se trata, a toda evidência, de cerceamento da ação institucional do Ministério Público. O que a lei restringe é a ação da repartição fazendária, proibida agora – como esteve quando da vigência da Lei 4.357/64, Art. 11, § 3º - remeter papéis, para fins de denúncia, ao Ministério Público, enquanto não se concluir, no processo administrativo, sobre a existência ou não da obrigação tributária. Isto é, o crime em tese contra a ordem tributária somente despontará, em princípio, configurado ao término do procedimento administrativo. Não é mais um simples auto de infração, resultante quase sempre de apressadas conquanto tensas inspeções, o instrumento com potencialidade indiciária suficiente para instruir denúncia criminal”.

E ainda leciona que com o advento da Lei 8.137/90 “sumiram os crimes de sonegação fiscal e surgiram os crimes contra a ordem tributária, crimes de dano”. Assim, “é importante não perder de vista esta distinção entre crimes de mera conduta e crimes de dano por causa de suas repercussões intensas no sistema jurídico-penal. Ou seja, a supressão ou redução de tributos, por exemplo, de que trata a Lei nº 8.137/90, somente se realiza com o proveito do agente, com a obtenção do resultado. Ora, isso depende de aferição do setor fazendário, na via administrativa. Só na conclusão do processo administrativo, assegurada a ampla defesa ao acusado, é que se poderá falar, em regra em lesão à ordem tributária, mediante supressão ou redução de tributos”.

E acrescenta Heleno Cláudio Fragoso, em Jurisprudência Criminal, decisão do Tribunal Federal de Recursos que a muito entendia que “a ação penal pelo crime de sonegação fiscal há que se proceder a instauração do processo fiscal supedâneo da ação penal” (DJ 19.06.72, p. 3932). Para o grande criminalista, “o crime de sonegação fiscal consiste em fraudar o pagamento de tributos, envolvendo necessariamente um ilícito fiscal. O ilícito penal – conclui – constitui um plus em relação a este, mas não pode subsistir sem ele”.

Na mesma toada o respeitado tributarista Hugo de Brito Machado, ao declinar que: “nos termos do Código Tributário Nacional compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível (...) Assim, nenhuma autoridade que não seja a responsável pela administração tributária pode dizer que alguém é devedor de tributo. Ou, mais exatamente, nenhuma autoridade, que não seja a competente para fazer o lançamento, pode dizer que ocorreu certo fato gerador de obrigação tributária, ou, em conseqüência, dizer que ocorreu o inadimplemento de uma obrigação tributária, seja acessória, ou principal”.

Outro não foi o entendimento do próprio PLENÁRIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL , que em 10.12.2003 deferiu por maioria de votos, habeas corpus, na oportunidade o MINISTRO PERTENCE lembrou entendimento do STF em que os requisitos de procedibilidade da ação penal devem atender a determinação legal. E a legitimidade para propor a Ação Penal no caso de crimes contra a ordem tributária, independentemente de iniciativa da administração tributária, é exclusiva do Ministério Público.

O relator firmou a discussão ao indagar se haveria justa causa para a denúncia dos crimes tributários antes do esgotamento das vias administrativas sobre o crédito tributário impugnado pelo contribuinte. O ministro afirmou que se o crédito tributário fora impugnado pelo contribuinte, a decisão final do procedimento administrativo poderia influenciar na estrutura do crime, pois poderia constituir o crédito tributário e, em conseqüência, permitir ao devedor liberar-se dele pelo pagamento. E observou que, extraordinariamente, a punibilidade da conduta do agente estaria subordinada à decisão de autoridade diversa do juiz da ação penal.

Neste ponto, Pertence deslocou a questão da esfera da tipicidade para a das condições objetivas de punibilidade. Apontou que as condições objetivas de punibilidade, no caso de crimes contra a ordem tributária, estariam "subordinadas à superveniência da decisão definitiva do processo administrativo de revisão do lançamento, instaurado de ofício ou em virtude da impugnação do contribuinte ou responsável". Após o aperfeiçoamento de sua tipicidade — tal crime seria punível.

Sendo assim, acertada a decisão plenária da Corte Maior, pois do contrário haveria verdadeiro choque entre o ius puniendi do Estado, que neste momento ainda não é exercitável, e os princípios da tipicidade penal, do contraditório, da reserva legal, da presunção de inocência, da ampla defesa e da segurança jurídica, que necessariamente devem coexistir no momento da propositura da ação penal e em cada instante do rito processual penal. Doravante, a denúncia proposta nestes moldes é flagrantemente inepta face aos dizeres do artigo 43, III, in fine, do Código de Processo Penal, padecendo de vício de existência, tornando nulo o processo assim intentado.

Frisa-se que o fato típico é composto pela conduta (ação/omissão), resultado (especialmente nos crimes materiais), nexo de causalidade e tipicidade. Contudo, importante distinguir o tipo e tipicidade, sendo que o tipo é a descrição feita pela lei, já tipicidade pertence à conduta, que se adequa ao tipo legal. Esta a lição do mestre argentino e atual integrante da Corte Suprema de Justicia de la Nación doutor Zaffaroni que: "tipicidade é a característica que tem uma conduta em razão de estar adequada a um tipo penal, ou seja, individualizada como proibida por um tipo penal".

Portanto, a tipicidade da conduta, eventualmente perpetrada pelo contribuinte, está condicionada à apuração administrativa, pois a obrigatoriedade do sistema contraditório fora adotado expressamente pela nossa Carta Magna (art. 5º, LV, Constituição Federal) e como se isso não bastasse, o direito fundamental ao contraditório e a ampla defesa administrativa se sobrepõem ao direito de promover a ação penal pública (art. 129, I, da Constituição Federal), se quisermos um sistema coerente.

Outrossim, o exaurimento do processo administrativo em que se discute a existência da própria relação jurídica originária do lançamento e, a posteriori, do próprio crédito fazendário é pressuposto processual de existência do processo, pois sem a caracterização da tipicidade naquele, não surge para o Ministério Público o direito a ação penal esculpido no artigo 129, I, da Constituição Federal de 1988.

O notável e saudoso jurista Pontes de Miranda nos ensina que: "há, a respeito da própria relação jurídica processual o To be or not to be. Ou se estabeleceu, ou não se estabeleceu a relação jurídica processual". O Ministério Público sem comprovar a tipicidade da conduta do contribuinte não possui legitimidade para exercer a persecução penal, pois ainda não há o chamado ius puniendi. Desse modo, por ausência de requisito de existência, não há como se formar a relação jurídico-processual.

É evidente o abalo à segurança jurídica, pois expõe o contribuinte a dois processos, um administrativo e outro criminal, sendo que cabe exclusivamente ao primeiro a certificação da existência da relação jurídico-tributária e ao segundo a persecutio criminis, podendo ocorrer, como de fato vem ocorrendo, a comprovação administrativa da inexistência de quaisquer débitos tributários e a simultânea condenação penal pela ausência de recolhimento de tributo, sonegação, etc.

O princípio da segurança jurídica, faz "propagar no seio da comunidade social o sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos da regulação da conduta. Tal sentimento tranqüiliza os cidadãos, abrindo espaço para o planejamento de ações futuras, cuja disciplina jurídica conhecem, confiantes que estão no modo pelo qual a aplicação das normas do direito se realiza". Portanto, a inépcia da denúncia é clara face ao artigo 43, III, parte final, do CPP, quando diz: "A denúncia ou a queixa será rejeitada quando: III - (...) ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal". A tipicidade é uma condição exigida, claramente, pela lei penal, pois somente neste momento surgirá o ius puniendi do Estado, de modo que sem estes elementos a denúncia padece de inépcia pretérita à própria propositura da ação.

Desse modo, “inevitável interação entre a regra vazada no focalizado art. 83 da Lei 9430/96 e as supracitadas normas inscritas no artigo 43 do CPP, translúcida emerge a conclusão de que ação penal por crime contra a ordem tributária deflagrada antes do pronunciamento administrativo acerca da exigência do crédito tributário é ação penal cuja causa petendi, desprovida da necessária tipicidade penal, não outorga condição elementar de admissibilidade e, nesse diapasão, não logra furtar-se à incidência do preceito a teor do qual “a denúncia ou queixa será rejeitada...” – e sem possibilidade de renovação – “quando o fato narrado evidentemente não constituir crime”.

Os fundamentos expostos demonstram que a ação penal pressupõe o escoamento da esfera administrativa nos crimes contra a ordem tributária, porque depende da observância da existência do fato gerador do tributo e ausência de causa que exclua ou suspenda a sua exigibilidade, conferindo ao acusado amplo direito de defesa.

Ademais, nos termos do artigo 142 do Código Tributário Nacional: “Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.”

Como assevera Hugo de Brito Machado: “nenhuma autoridade que não seja a responsável pela administração tributária pode dizer que alguém é devedor de tributo. Ou, mais exatamente, nenhuma autoridade, que não seja competente para fazer o lançamento, pode dizer que ocorreu o inadimplemento de uma obrigação tributária, seja acessória ou principal.

A atividade de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional da autoridade administrativa. Assim, se esta não efetua o lançamento tributário, sendo este cabível, deve ser responsabilizada por sua falta. Inadmissível, porém, que outra autoridade, por mais importante que seja, pratique aquela atividade”. Há que se fazer interpretação sistemática das normas, de onde se conclui que, o processo penal por sonegação fiscal somente possa ser iniciado quando terminada a discussão administrativa ou judicial sobre se o crédito tributário é devido ou não.

A lição também é de Nelson Bernardes de Souza, ao trazer à tona outro dos pilares a sustentar a logicidade do raciocínio: “Parece nítida a existência de uma questão prejudicial. Não é o Juiz Criminal que vai afirmar a existência de tributos ou contribuições reduzidos ou suprimidos Somente a autoridade administrativa, nos termos do art. 142 do CTN poderá dizê-lo. E assim o fará após o término do procedimento administrativo. A existência ou não da supressão ou redução de tributos ou contribuiçôes é elementar do tipo. no sentido de ser o resultado punível, é a própria tipicidade. Sem ação típica não há que falar na existência de crime”.

Aliás, como já manifestou o Ministro CARLOS VELLOSO, presidente do STF (na ADIn nº 1.571), depois de constituído referido crédito definitivamente, o devedor tem todo direito de pagá-lo com a pretensão de extinguir a punibilidade, caso algum delito tenha sido vislumbrado. Com isso ficam satisfeitos os interesses do contribuinte (a quem se assegura a possibilidade de petição e de defesa inclusive na esfera administrativa — CF, art. 5º, inc. XXXIV, "a") assim como do Estado (que objetiva sempre antes de tudo arrecadar o imposto apurado e que não foi pago, extinguindo-se a punibilidade).

Ora, as normas penais devem ser interpretadas em favor do acusado, especialmente quanto a prática de fato típico, e a conseqüência da denúncia prematura ou precipitada ou ante tempus consiste na pretensão de se impedir que o pagamento do tributo devido, após o encerramento do processo administrativo e dentro do prazo legal, venha a extinguir a punibilidade (porque nesta altura a denúncia já fora recebida). Se considerada sem o crédito tributário estar definitivamente constituído (CTN, art. 174) não se pode fazer o pagamento, especialmente porque nem sequer se sabe o quantum debeatur, não há dúvida que desde a perspectiva de uma interpretação teleológica esse pagamento a posteriori, derivado da impossibilidade jurídica de ser efetuado antes do encerramento do processo administrativo, deve conduzir também à extinção da punibilidade, comprovando-se que o tributo, antes da denúncia, era inexigível em razão de recurso administrativo.

Mais uma vez de proveito recorrer a Nelson Bernardes de Souza: “é o lançamento definitivo que aponta a existência de crédito tributário. Tanto assim é que, sem o lançamento definitivo, não há que se falar na existência de crédito líquido e certo a ensejar a inscrição da ativa, nem autoriza o processo de execução fiscal”.

Dentre os exemplos extraídos da legislação repressiva, costuma-se destacar, como típica condição objetiva de punibilidade, o decreto de quebra nos crimes falimentares. Não se pode falar em crime tributário sem a definição da existência do tributo devido que, no caso, no art. 83 em tela, é condição objetiva de punibilidade.

Em síntese, o recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal expôs a necessidade do exaurimento da via administrativa, que coaduna com o sistema constitucional de garantias, mormente, com o contraditório administrativo, a ampla defesa, a reserva de lei, a presunção de inocência e a segurança jurídica. Como demonstrado acima, o processo administrativo tributário é responsável pela solidificação do lançamento e conseqüentemente pela tipicidade penal, fato gerador do dever-poder de punir do Estado.

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